terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Mérito ou Objeto Litigioso do Processo - Uma Pausa para Revisitar um Velho e Importantíssimo Conceito


Mérito, objeto litigioso, thema decidendum, lide, res in iudicium detucta, fundo do litígio, questão principal, são muitas as designações para aquilo que constitui o núcleo do processo de conhecimento.
Trata-se de noção antiquíssima, já presente na processualística romana[1], embora a moderna teoria do objeto litigioso (streitgegenstand), equiparado à pretensão processual (prozessuale Anspruch), tenha sido desenvolvida pela doutrina alemã de fins do século XIX[2].
Pode-se dizer que preocupação do Direito Moderno com o tema exsurgiu a partir da definitiva separação entre a pretensão de direito material e a pretensão de direito processual, consolidada com os estudos de Oskar Von Bülow[3], que deu início à fase autonomista ou conceitual do direito processual civil, na qual surgiram as grandes teorias sobre a natureza da ação e do processo, desenvolvendo-se uma autêntica ciência processual[4].
Com efeito, conquanto possa parecer um esforço acadêmico inútil - ainda mais em tempos de "celeridade e efetividade a todo custo", no qual todos os olhos estão voltados para a execução - buscar um conceito preciso de objeto litigioso é fundamental para a compressão de muitos institutos do processo civil, tais como cognição, coisa julgada, litispendência, conexão, questões prejudiciais, etc.
Todavia, o assunto é dos mais intrincados, razão pela qual, a despeito do empenho dos juristas - destacadamente os alemães -, jamais se logrou chegar a um consenso sobre a composição do objeto litigioso do processo, havendo duas correntes principais: aquela segundo a qual ele seria representado apenas pelo pedido, e aquela que o vê como um binômio formado por pedido e causa de pedir[5].
Essa segunda corrente teve como principal defensor o alemão Walter J. Habscheid, que propugnava a composição dúplice do objeto litigioso do processo, o qual seria formado pela “coisa” demandada (Gegenstand), que corresponderia a uma afirmação jurídica, e pela “causa” da demanda (Grund), consistente num estado de fato da vida[6].
Tal concepção também é aceita por outros célebres juristas, estrangeiros e nacionais, tais como Manuel Ortells Ramos[7], Araken de Assis[8] e José Ignácio Botelho de Mesquita[9].
Contudo, no direito brasileiro, embora tenha crescido, nos últimos tempos, o número de adeptos da concepção maximalista de mérito (pedido + causa de pedir), ainda prepondera na doutrina mais tradicional o entendimento de que o objeto litigioso do processo seria representado unicamente pelos pedidos autorais.
Assim aduz Sydney Sanches: [...] só uma parte do objeto do processo constitui o objeto litigioso do processo: é o mérito, assim entendido o pedido do autor formulado na inicial e nas oportunidades em que o ordenamento jurídico lhe permita a ampliação ou modificação[10].
Dinamarco se manifesta em idêntico sentido:

O objeto do processo consiste no petitum do demandante, e não nos fundamentos invocados por ele e muito menos nas razões defensivas do demandado. Sobre o pedido o juiz decide principaliter, sobre os fundamentos, incidenter tantum. Eis por que, com plena legitimidade sistemática, o art. 469 do Código de Processo Civil põe fora do alcance da coisa julgada material todos os fundamentos da sentença e estende essa regra à “apreciação da questão prejudicial incidentemente no processo”[11].

Ilustrado o dissenso doutrinário reinante sobre o tema, tomo a liberdade de expor, a partir de agora, a minha visão sobre a matéria.
Com o devido respeito, parece-me que o entendimento adotado por ambas as correntes é falho, isso porque essas noções de objeto litigioso partem de uma compreensão errônea sobre a atividade decisória, como se intentará demonstrar doravante.
Como cediço, ao se deparar com um processo judicial litigioso, o magistrado primeiro analisa e resolve as questões de fato e de direito pertinentes à lide, e depois disso, decide ou julga o mérito, emitindo um comando representativo da tutela jurisdicional cognitiva em favor daquele que se mostrou com razão. Esse é o curso normal do processo, caso não haja nenhuma intercorrência impeditiva.
Também é assente que o que transita em julgado não são os fundamentos que o magistrado emprega para justificar a decisão, ou mesmo a conclusão por ele obtida sobre a lide, mas apenas o comando emitido a partir dessa conclusão, e que vem expresso no decisório da sentença ou acórdão, comando esse que, além do aspecto declaratório, pode ser condenatório e/ou constitutivo.
Ocorre que, diferentemente do que sugere a concepção de mérito sustentada pela doutrina tradicional, o ato de decidir ou julgar é complexo, envolvendo, num primeiro momento, atividade de cunho intelectivo ou deliberativo e, apenas em um segundo momento, atividade de natureza preceptiva ou imperativa.
O próprio Liebman, um dos grandes responsáveis por consolidar a noção de objeto litigioso como pedido do autor, declarava que “julgar” é valorar determinado fato ocorrido no passado, valoração essa que se dá sob a ótica do direito vigente, determinando-se, em consequência, a norma concreta que passará a reger o caso[12].
Vê-se, pois, que a não ser por esse segundo momento, relativo à emissão de um comando imperativo com aptidão para se tornar imutável por efeito da coisa julgada, e pelo objeto específico sobre o qual incide – o mérito -, o julgamento em nada mais difere do ato da cognição, realizada sobre as questões incidentais, o que faz concluir que o mérito seja também uma questão a ser resolvida (aliás, a principal delas), e não um simples dado, como são os pedidos e a causa de pedir.
Deveras, tendo-se à vista a feição cognitiva do ato decisório, fica evidente que não são propriamente os pedidos e/ou a causa de pedir que são julgados (analisados, valorados e resolvidos), mas a questão relativa à procedência ou improcedência dos pedidos em face de todo o material sujeito à cognição, essa sim a verdadeira “questão principal”.
É, sem dúvida, um erro crasso afirmar que a questão principal diz respeito unicamente ao pedido, ou mesmo a esse acrescido da causa de pedir, isso porque aquele não é analisado no vácuo, ou em face apenas da causa petendi.
Em verdade, a existência de pretensão material (aqui entendida como direito subjetivo oriundo de uma situação fática) e a compatibilidade dessa com os pedidos é perquirida frente às conclusões obtidas pelo magistrado mediante a resolução de todas as questões ligadas à matéria de fundo do litígio, questões essas oriundas não apenas da demanda do autor, mas da defesa do réu, e da própria iniciativa do juiz, quanto às matérias que a lei lhe faculta conhecer de ofício.
Outrossim, perceba-se que a corrente que defende o mérito como binômio pedido/causa de pedir não o faz por considerar o aspecto cognitivo do ato decisório, mas apenas em atenção à necessidade de identificação do pedido. Nesse sentido, veja-se a lição de José Roberto dos Santos Bedaque, que, ao justificar a inclusão da causa de pedir no objeto litigioso, aduz que a causa de pedir que revela o nexo existente entre direito material e processo, possibilitando a identificação do próprio objeto mediato da ação (o bem da vida pretendido), de modo que é a partir dos fatos e do fundamento jurídico da demanda que se chega ao pedido[13]. Da mesma forma Junior Alexandre Pinto: “a causa de pedir representa na demanda elemento indissociável do pedido, sendo impossível o entendimento deste sem a ocorrência da primeira”[14].
De fato, os pedidos não conseguem exprimir seu significado isoladamente, dependendo, para isso, da causa de pedir, mas não é apenas a compreensão dos pedidos que é buscada no ato do julgamento, mas a aferição de sua procedência ou improcedência.
De tal arte, a afirmação de que o thema decidendum ou mérito seria representado apenas pelos pedidos, ou por esses em conjunto com a causa petendi, reflete uma visão incompleta da atividade decisória, porquanto negligencia a sua feição cognitiva - consistente na produção de juízo de valor sobre a lide, o qual vem expresso na fundamentação da sentença -, fazendo ressaltar apenas o seu caráter preceptivo, como provimento jurisdicional expresso no decisório, que seria delimitado apenas pelo pedido (identificado ou não através da causa de pedir), o qual funcionaria como um autêntico “projeto de decisório”, um esboço do comando a ser exarado pelo juiz na parte final da sentença.
A outro giro, mesmo que se quisesse compreender o ato decisório como simples emissão de comando jurisdicional, sem caráter cognitivo, seria descabido sustentar a identidade entre pedidos (ou pedidos + causa de pedir) e objeto litigioso, eis que isso equivaleria a negar a possibilidade de decisão declaratória de improcedência, já que esse comando, obviamente, não foi pleiteado pelo autor, sendo forçoso concluir que essa decisão estaria fora dos limites do mérito, o que é um absurdo!
Assim, a todos os olhos, resta patente que não são os elementos objetivos da demanda em si (causa de pedir e/ou pedido) que servem de base para a emissão do provimento jurisdicional constante do decisório, mas sim a conclusão obtida pelo magistrado a partir da resolução da questão principal, que envolve também outros elementos, como demonstrado acima.
Destarte, penso que o mérito seja a questão relativa à procedência ou improcedência dos pedidos frente às conclusões obtidas a partir da resolução das questões incidentais, sendo certo que a resolução da questão principal pode resultar num comando a favor do autor ou a favor do réu. Assim, não há equívoco em afirmar que todas as ações são, em alguma medida, dúplices.
De mais a mais, seguindo a linha de raciocínio aqui proposta, é descabida a diferenciação feita pela doutrina brasileira entre mérito e questões de mérito, já que o próprio mérito é uma questão que se superpõe e, de certa forma, congloba todas as questões ou pontos que se relacionam com a demanda e/ou a defesa. Não há, pois, o mérito e as questões de mérito, mas apenas as questões atinentes ao fundo do litígio (situação material discutida), subdivididas entre questões incidentais e questão principal.




[1] BUZAID, Alfredo. apud SÁ, Renato Montans de. op. cit. Eficácia preclusiva da coisa julgada. 2010, Dissertação (mestrado em Direito Processual Civil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em <http: www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp134829.pdf> Acesso em: 03 set. 2014.p. 74
[2] TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 3 ed. São Paulo: RT, 2009. p. 95
[3] BÜLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales, trad. Minguel Angel Rosas Lichtschein. Buenos Aires: Ejea, 1964. apud TUCCI, José Rogério Cruz. op. cit. p. 97
[4] CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrino; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.28ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 51
[5] DIDIER JUNIOR, Fredie. Contradireitos, objeto litigioso do processo e improcedência. Disponível em <http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/paginas_185_196.pdf> Acesso em: 15 de Dez. 2014.
[6] HABSCHEID, Walter J. L’oggetto del processo nel diritto processuale civile tedesco. In.: Rivista di Diritto Processuale, II serie, 1980, p. 454 e ss. apud  LEMOS, Jonathan Iovane de. Introdução ao estudo do objeto litigioso do processo. Disponível em <http://www.tex.pro.br/home/artigos/73-artigos-set-2007/5670-introducao-ao-estudo-do-objeto-litigioso-do-processo-sucintas-consideracoes-sobre-os-elementos-individualizadores-do-meritum-causae> Acesso em: 11 de Dez. 2014.
[7] RAMOS, Manuel Ortells. Derecho procesal civil. Navarra: Aranzandi, 2000. p. 255 apud PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa de pedir e o contraditório. cit. p. 33
[8] ASSIS, Araken. Cumulação de Ações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 117-122.
[9] MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A causa petendi nas ações reivindicatórias. Revista da Ajuris, n. 20, 1980, p. 167-168.
[10] SANCHES, Sydney. Objeto do Processo e Objeto Litigioso do Processo. Revista Ajuris. n° 16, 1979, Porto Alegre. p. 155-156.
[11] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6ed. São Paulo: Malheiros, 2011. v.3. p. 540. Na mesma linha segue o magistério de Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 15ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v.2 p. 58)
[12] MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil: do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 5. p. 29
[13] BEDAQUE, José Rogério dos Santos. Os elementos objetivos da demanda examinados a luz do contraditório. Causa de Pedir e Pedido no processo civil (questões polêmicas). Coordenadores: José Rogégio Cruz e Tucci; José Roberto dos Santos Bedaque. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 30.
[14] PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Editora RT, 2007. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil, v. 12). p. 33

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A Fundamentação das Decisões no Novo CPC (Parte III – O §1° do Artigo 489 do Novo Código e as "Falsas Fundamentações")

Dando seguimento ao estudo das alterações, operadas pelo NCPC, que impactam de algum modo a fundamentação das decisões judiciais, falarei, por ora, do rol legal de “falsas fundamentações”, que demonstra claramente a preocupação do legislador com a efetiva motivação das decisões.
De fato, ciente da importância da fundamentação dos julgados, o legislador não se limitou a defini-la como elemento essencial da sentença (art. 489, II), como no CPC/1973. Preocupou-se, também, com o seu conteúdo, a fim de garantir a presença da motivação em sua dimensão substancial, e não apenas formal.  
Nesse afã, o Novo Código listou, em rol exemplificativo, as hipóteses mais frequentes do que a doutrina chama de fundamentação inútil ou deficiente[1], equiparando-as à ausência de motivação que, consoante o artigo 93, inciso IX, da CRFB, nulifica o decisium.
Observe-se o sobredito rol, constante do §1° do artigo 489 do Codex:  
Art. 489.  São elementos essenciais da sentença:
[Omissis]
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Perceba-se que estes ditames estão coordenados com o artigo 1.022, par. ún., II, do NCPC, que considera omissa, para fins de interposição de embargos declaratórios, decisão que se enquadre nas hipóteses do §1° do artigo 489. O §1° do artigo 927, que trata dos precedentes vinculantes, também faz menção a essas normas: “os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, §1°, quando decidirem com fundamento neste artigo”.
Esta é mais uma das inovações do CPC/2015 que não colima, propriamente, modificar o regime jurídico processual anterior, mas apenas tornar explicitas, ou expressas, normas que já existiam no sistema, muitas delas produtos de filtragem constitucional das disposições do CPC/1973.
Sem dúvida, a vedação ao que chamo de “falsas fundamentações” poderia ser retirada do próprio dever de motivação, imposto pela Constituição Federal. Todavia, a previsão legal expressa de algumas pseudo motivações ajudará, e muito, a coibir as constantes violações a esse dever constitucional, dando aos jurisdicionados e às instâncias revisoras parâmetros mais objetivos de controle, o que gerará, por conseguinte, um efeito persuasivo nos magistrados, que se sentirão mais cobrados para prestarem contas de seus julgamentos, mostrando às partes e à sociedade que realizaram uma adequada e efetiva análise da questão decidida.
Ademais, o dispositivo sob exame constitui mostra de que o Novo Código não busca celeridade a todo custo, preocupando-se, também, em melhorar a qualidade da prestação jurisdicional.
Ainda antes de analisar, amiúde, os incisos do dispositivo em tela, deve-se atentar para o fato de que o §1° do artigo 489 se refere a todo e qualquer ato judicial com conteúdo decisório, seja ele uma decisão interlocutória, sentença ou acórdão, que serão nulos caso se configure alguma das hipóteses de seus incisos.
Outro fato digno de nota é o caráter exemplificativo do rol legal, que decorre, como ressalta Fredie Didier, do próprio móbil da norma, que é concretizar um direito fundamental -  o direito à motivação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF)[2]. Destarte, há outras situações em que a decisão, embora contenha motivação, em seu aspecto formal, será considerada não fundamentada.
Por fim, perceba-se que, se a decisão se pautar em mais de um fundamento auto-subsistente, e for verificado, em apenas um deles, algum dos vícios dos incisos do §1° do artigo 489, não haverá por que anular a decisão, dada a manutenção do outro fundamento. 

Incisos I e II:
Dito isso, observemos os incisos I e II, que tratam, respectivamente, das fundamentações em que o julgador se limita “[...]à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida” (inciso I), e daquelas nas quais o juiz emprega “[...]conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso” (inciso II).
Ora, por serem formas de expressão linguística, todos os textos legais, conceitos jurídicos e narrativas fáticas, em maior ou menor medida, precisam ser interpretados. Ademais, é preciso integrar a dimensão normativa, sempre hipotética, à dimensão fática, demonstrando-se a aplicabilidade ou não das normas à situação concretamente deduzida, bem como os efeitos dessa possível incidência normativa e a compatibilidade desses efeitos com a decisão tomada.
Bem por isso, não basta indicar, reproduzir ou parafrasear o texto legal, afirmando – sem argumentação que considere os fatos - que tal ou qual dispositivo ou conceito jurídico se aplica ao caso.
Assim sendo, é possível traçar um roteiro básico, que deve ser seguido pelos julgadores na generalidade dos casos: 1) enunciar sua interpretação quanto aos relatos fáticos da causa de pedir e da causa excipiendi do réu, e/ou, se for o caso, a sua interpretação quanto ao fato jurídico processual sobre o qual decide, deixando claro os parâmetros fáticos de sua decisão; 2) declinar, de maneira racional e objetiva, as razões para a formação de seu convencimento sobre as provas que tenham sido apresentadas (no caso de a decisão versar sobre fatos controvertidos), explicitando, também, em que medida cada uma das partes se desincumbiu de seus ônus probatórios; 3) enunciar sua interpretação sobre as normas relacionadas às teses jurídicas empregadas na decisão, e também sobre as normas jurídicas que precisem ser discutidas para justificar o não acolhimento da causa de pedir ou da causa excipiendi da parte derrotada (vide inciso IV); 4) expor as razões da incidência, ou não, dessas normas aos fatos considerados; 5) apresentar as consequências jurídicas oriundas da eventual incidência dessas normas, explicando como e por que tais consequências, ou a ausência delas (no caso de a norma não gerar os efeitos alegados pela parte) determinaram a decisão tomada pelo juiz.
Naturalmente, haverá causas em que a simplicidade dos fatos e a pouca abertura semântica das normas aplicáveis resultará em uma fundamentação bem menos trabalhosa. Porém, haverá situações em que se observará justamente o inverso, como ocorre, por exemplo, com a aplicação dos princípios, ou de normas que contenham conceitos jurídicos indeterminados, cuja baixa densidade normativa exigirá do julgador um trabalho maior de construção ou concretização do sentido dessas normas, devendo o magistrado, porque exerce função pública, prestar contas desse trabalho.

Inciso III:
Ao vedar fundamentações [...]que se prestariam a justificar qualquer outra decisão” o legislador claramente intenciona acabar com as decisões-padrão, aquelas que, por serem pré-concebidas, não são produto de uma análise particularizada do caso.
Veja-se que, por uma interpretação puramente literal, e até maliciosa, poder-se-ia sugerir que a simples existência de um caso cuja decisão não pudesse se arvorar naquela ratio decidendi seria suficiente para afastar a incidência desse ditame, eis que tal fato demonstraria a inaptidão daquele fundamento para motivar toda e qualquer decisão judicial.
À evidência, trata-se de interpretação absurda, que somente poderia ser sustentada por quem tenta se desviar da verdadeira regra enunciada neste dispositivo.
Resta claro, pois, que a intenção da lei é fazer com que o magistrado dedique ao menos um trecho da fundamentação à análise jurídica dos fatos pertinentes à questão a ser decidida, de modo a demonstrar que criou a norma jurídica individual com vistas à situação concreta deduzida.
Vejamos os comentários de Marinoni, Arenhart e Mitidiero acerca do texto legal em epígrafe:

Se determinada decisão apresenta fundamentação que serve para justificar qualquer decisão, é porque essa decisão não particulariza o caso concreto. A existência de respostas padronizadas que servem indistintamente para qualquer caso justamente pela ausência de referências às particularidades do caso demonstra a inexistência de consideração judicial pela demanda proposta pela parte. Com fundamentação padrão, desligada de qualquer aspecto da causa, a parte não é ouvida, porque o seu caso não é considerado[3].
Assim sendo, a partir de agora, existe mandamento legal expresso a proteger o jurisdicionado contra aquelas decisões, tão aviltantes quanto costumeiras, que se limitam a dizer: “inexistentes os pressupostos legais, indefiro o pedido”, ou “ausentes os pressupostos processuais, extingo o feito sem resolução de mérito”, ou ainda “considerando a ausência do fumus boni iuris e do periculum in mora, indefiro a antecipação de tutela pleiteada”.

Inciso IV:
Está assim redigido o texto legal: Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: [...] não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”.
Este é, seguramente, o ditame mais emblemático dentre os ora analisados, pois tem o escopo de corrigir um desvio de perspectiva muito comum entre os magistrados: o de acreditar que o cerne da motivação reside em justificar o acolhimento dos fundamentos da parte vencedora, relegando a um segundo plano a explicação dos porquês da rejeição dos fundamentos da parte vencida.
A ratio da norma é a de que, se existe mais de uma causa de pedir apresentada pela parte beneficiária da decisão, não há necessidade de o magistrado tratar sobre todas elas, haja vista que essa omissão não importará prejuízo à parte que a aventou. Porém, se há vários argumentos autônomos levantados contra a decisão prolatada, é dever do juiz se pronunciar sobre todos eles, explicando os motivos pelos quais cada um deles foi rejeitado.   
 De fato, se é a parte vencida que tem interesse recursal para se insurgir contra a decisão desfavorável, e se é a sua esfera jurídica a prejudicada pelo ato jurisdicional, é também a ela a quem o Judiciário deve maiores explicações, e não à parte que teve sua pretensão acolhida.
Sem embargo, sob a égide do CPC/1973, a necessidade de enfrentar todos os argumentos da parte derrotada era negada pela quase totalidade dos juízes, posto não haver disposição legal expressa que os impusesse essa conduta, alegando os magistrados que ela não poderia ser depreendida do dever genérico de fundamentar, ao revés do que já defendia parte da doutrina.
Criticando duramente essa postura renitente dos juízes, Didier Jr., Oliveira e Braga asseveram:
A questão é que esse entendimento jurisprudencial – que já virou um jargão no âmbito dos tribunais – vem sendo utilizado para justificar a desnecessidade de análise das alegações da parte mesmo nos casos em que a sua tese foi rejeitada. Esse mau costume constitui não apenas um erro técnico como também uma forma de aniquilar o direito de ação e as garantias do contraditório e da ampla defesa. Sim, porque embora a Constituição diga que a parte tem o direito de provocar a atividade jurisdicional (art. 5°, XXXV), e embora a Constituição garanta à parte amplas possibilidades de defesa e de influência (art. 5°, LV), o Judiciário diz que não tem a obrigação de emitir um juízo de valor sobre todos os seus argumentos[4].
A irresignação dos magistrados com essa nova exigência legal foi, claramente, o principal motivo que levou algumas associações nacionais de magistrados - Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) – a encaminhar à presidência da república pedido de veto a alguns artigos do Novo Código, a saber: artigos 12, 153, 942 e §1° do artigo 927, além, é claro, dos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 489[5], pedidos estes que não foram acolhidos.
Em suma, os juízes sustentavam que mudanças gerariam "impactos severos, de forma negativa, na gestão do acervo de processos, na independência pessoal e funcional dos juízes e na própria produção de decisões judiciais em todas as esferas do país, com repercussão deletéria na razoável duração dos feitos”.
De fato, aqueles julgadores que costumavam fundamentar suas decisões de modo perfunctório e insuficiente, agora terão de fazê-lo de forma completa e efetiva, o que, sem dúvidas, aumentará o seu trabalho e de seus assessores e, por consequência, pressionará ainda mais a já subdimensionada máquina judiciária. Isso é um fato.
Porém, apesar de reconhecer que o Novo Código foi discreto em relação a medidas de celeridade – tais como o rearranjo do sistema recursal – entendo que fechar os olhos para o desrespeito a garantias constitucionais como a do contraditório (substancial) e a da fundamentação das decisões (art. 93, IX, CRFB) seja um preço alto demais a se pagar para obter maior celeridade. Como defendi no post inicial deste blog, a celeridade e a efetividade do processo não podem ser perseguidas a qualquer custo, afinal, o processo tem escopos a atingir, e esses escopos estão relacionados não apenas ao fazer (concessão da tutela jurisdicional), mas também ao como fazer (imposição de regras procedimentais alinhadas às garantias constitucionais).
A outro giro, importa destacar que, ao se referir a “argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, a lei está se referindo a todas as causas de pedir apresentadas pelo demandante derrotado, ou à totalidade das causas excipiendi levantadas pelo demandado vencido, haja vista a possibilidade de serem cumuladas.
A lei, portanto, exige pronunciamento sobre cada causa petendi ou causa excipiendi, sendo elas entendidas como conjunto de fundamentos fático-jurídicos apresentados pelas partes (demandante ou demandado) como capazes de justificar, de per si, a sua pretensão ofensiva ou defensiva. Assim, nem sempre será preciso que o juiz examine todos os fundamentos fáticos e jurídicos trazidos pela parte derrotada, bastando que exponha os motivos para não ter acolhido cada conjunto de fundamentos deduzidos.
A título de exemplo, imagine-se uma demanda indenizatória hipotética, na qual o autor afirma que o aparelho de ar-condicionado adquirido da empresa ré veio com vício oculto que ocasionou um vazamento de gás, o qual, por sua vez, gerou uma explosão causadora de graves danos físicos ao autor, e que em virtude desses danos físicos, o autor veio a passar por uma série de transtornos de ordem psicológica.
Em tal caso, vindo o magistrado a concluir, através das provas, que o aparelho não fora adquirido junto à ré, ou que não havia qualquer vício no aparelho em foco, caberá ao juiz, na fundamentação, posicionar-se apenas sobre esse ponto específico, devendo explicar, de modo racional, por que toda a causa de pedir ficou prejudicada pela improcedência desse fundamento fático.
Por último, ressalte-se que há certos casos nos quais não se aplica o inciso IV do artigo 489, §1°. Um desses casos é o julgamento de recursos repetitivos ou incidente de resolução de demandas repetitivas, que segue regra diversa: o órgão julgador terá de se pronunciar sobre todos os fundamentos da tese jurídica discutida, contrários ou favoráveis à decisão (art. 1.038, §3° e art. 984, §2°). Demais disso, havendo sido observado o inciso IV na formação do precedente obrigatório, não é necessária sua observância quando da aplicação do mesmo, quando deverão ser seguidas apenas as regras dos incisos V e VI do artigo 489, §1°, analisadas abaixo.

Incisos V e VI:
A técnica de interpretação de um precedente judicial é diferente daquela aplicável à interpretação de um texto legal. Isso porque, para se compreender a norma jurídica individual enunciada em uma decisão é necessário investigar os seus parâmetros fáticos, comparando-os com os fatos que compõem a questão a ser solucionada, a fim de averiguar se há correlação bastante entre os casos para autorizar a aplicação do precedente - é o que se chama de distinguishing.
Assim, se o juiz ou tribunal, ao fundamentar sua decisão, invoca o precedente (seja ele obrigatório ou persuasivo) apenas citando a ementa do julgado, ou transcrevendo o enunciado da súmula, esse fundamento é tido como inexistente, a teor do inciso V do artigo 489, §1°: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial [...] que: se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”.
De tal arte, se a decisão tem como único fundamento o precedente, seja ele obrigatório ou apenas persuasivo, e não realiza o necessário distinguishing, a decisão será nula por falta de fundamentação.
De mais a mais, quando se trata de precedente obrigatório, faz-se necessária a observância do inciso VI do dispositivo em comento, que considera não fundamentada a decisão que “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
De fato, se o precedente é vinculante, para que o julgador possa deixar de aplica-lo, é necessário que especifique quais diferenças entre os casos tornam inadequada essa aplicação (distinguishing), ou, em sendo competente para tal, que indique a superação do entendimento anterior (overruling) ou a limitação de sua abrangência (overriding).   



[1] DIDIER JUNIOR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 10 ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. v2. p. 326
[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. et al. op. cit. p. 327
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. AREHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil. São Paulo: Editora RT, 2015. v2. p. 444-455
[4] DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de; BRAGA, Paula Sarno. In Comentários ao Novo Código de Processo Civil (Coordenação - Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer). Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 715
[5] Cf. <http://www.conjur.com.br/2015-mar-04/juizes-pedem-veto-artigo-cpc-exige-fundamentacao>

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A Fundamentação das Decisões no Novo CPC (Parte II - O Sistema da Persuasão Racional no Artigo 371 do Novo Código)

Prosseguindo com a análise das novidades trazidas pelo Novo CPC, darei sequência aos comentários, iniciados no post anterior, sobre as alterações legislativas que, de algum modo, impactam no conteúdo e/ou na forma da fundamentação das decisões judiciais.
Só para variar, falarei sobre um tema bastante polêmico: a disparidade entre a redação dos artigos 131 e 371, do CPC/1973 e do CPC/2015, respectivamente. Tais dispositivos, embora correlatos, diferenciam-se pela inexistência, apenas nesse último, de menção expressa à liberdade do magistrado na apreciação das provas, o que, para muitos, significaria o fim do sistema do “livre convencimento motivado”, representando, portanto, um grande passo na luta contra os criticados decisionismos dos juízes brasileiros.
Veja-se a redação desses dispositivos:
CPC/1973
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
CPC/2015.
Art. 371.  O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
A meu ver, se trata de alteração legislativa de grande importância, mas exclusivamente em razão de sua forte carga simbólica, que pode trazer repercussões práticas muito desejáveis para o processo civil brasileiro. No entanto, como tentarei demonstrar a seguir, não consigo visualizar nenhuma repercussão técnico-jurídica advinda do novo texto legal.  
Deveras, a supressão do advérbio “livremente”, processada em atendimento à sugestão do notável jurista e professor gaúcho Lenio Streck, um dos mais destacados críticos do protagonismo judicial, e acompanhada de uma exposição de motivos na qual se ressalta a incompatibilidade do sistema democrático com juízos intimistas na apreciação das provas, revela uma tímida, porém importante reação do Legislativo contra os excessos cometidos pelo Poder Judiciário, nos últimos tempos.
A inovação, por certo, sepultará a antiga e incoerente nomenclatura “livre convencimento motivado”, atribuída pela generalidade dos estudiosos e pela unanimidade dos tribunais ao sistema de valoração probatório brasileiro, fazendo ascender, provavelmente, a expressão “persuasão racional”, já empregada por alguns autores[1].
Todavia, daí a afirmar que a nova dicção normativa significa uma ruptura com o sistema de valoração probatória até então vigente, e a implantação de um novo, há muita distância.
Nesse passo, calha perguntar: eram os juízes, sob a égide do Código processual de 1973, totalmente livres para firmarem sua convicção sobre as provas, por mais esdrúxulos que fossem os motivos apresentados? E mais: O Novo Código impôs alguma limitação adicional ao juízo de valor sobre as provas? Para as duas perguntas, penso que a resposta seja negativa.
Acredito haverem fortes razões para se sustentar que a recepção do Código de 1973 pela Constituição Federal de 1988 – a qual, indubitavelmente, provocou uma reconstrução semântica em alguns dos ditames do CPC - afastou por completo a possibilidade de o juiz tomar um dado fato como verdadeiro pela simples razão de “lhe ter parecido suficiente a prova apresentada”, embora, na prática, motivações como essas não tenham se tornado raras.
Penso eu que seria flagrantemente inconstitucional interpretar o termo “livremente”, contido no artigo 131 do CPC/1973, como um permissivo para que o magistrado valorasse as provas de acordo com sua consciência pessoal, sem respeito a padrões mínimos de razoabilidade. Por isso, o termo em foco deve ser visto apenas como um indicativo da não adoção, pelo Código Buzaid, do sistema da prova tarifada - aquele no qual a lei estabelece, previamente, a hierarquia dos diversos meios de prova – devendo o próprio juiz, destarte, determinar os pesos que terão as provas constantes dos autos, expondo, na decisão, os critérios empregados e as razões dos pesos atribuídos.
De tal arte, ao exigir a indicação “das razões da formação de seu convencimento”, a lei antiga, mesmo que implicitamente, impunha ao juiz que valorasse as provas com base em parâmetros objetivos, os quais deveriam ser consignados na fundamentação da decisão, não apenas para fins informativos (o que seria incompatível com o sistema democrático instituído pela CRFB/1988), mas também para que pudessem ser controlados, com base no princípio da razoabilidade.
Enfatizando a necessidade de controle sobre a atividade jurisdicional relativa à apreciação das provas, Malatesta já sustentava o que chamou de sociabilidade do convencimento: “O convencimento não deve ser, por outros termos, fundado em apreciações subjetivas do juiz; deve ser tal que os fatos e as provas submetidas a seu juízo, se fossem submetidos à apreciação desinteressada de qualquer outra pessoa racional, deveriam produzir, também nesta, a mesma convicção que produziriam no juiz[2].
Em fato, a discricionariedade advinda da ausência de tarifação dos meios de prova não pode ser confundida com arbitrariedade, que pressupõe a ausência total de limites e, por isso, não tem lugar em qualquer das funções públicas desempenhadas em um Estado Democrático de Direito.
Sobre os limites da discricionariedade, creio não haver melhor doutrina do que a de Celso Antônio Bandeira de Mello, que embora concebida com vistas à função administrativa, tem plena aplicabilidade no âmbito jurisdicional:
[...] A existência de discricionariedade ao nível da norma não significa, pois, que a discricionariedade existirá com a mesma amplitude perante o caso concreto e nem sequer que existirá em face de qualquer situação concreta que ocorra, pois a compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na regra e, eventualmente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade. [...] Para ter-se como liso o ato não basta que o agente alegue que operou no exercício de discrição, isto é, dentro do campo de alternativas que a lei lhe abria. O juiz poderá, a instâncias da parte e em face da argumentação por ela desenvolvida, verificar, em exame de razoabilidade, se o comportamento administrativamente adotado, inobstante contido dentro das possibilidade em abstrato abertas pela lei, revelou-se, in concreto, respeitoso das circunstâncias do caso e deferente para com a finalidade da norma aplicada[3].
Em suma, o fato de a norma processual não estabelecer, antecipadamente, o peso que terá cada prova apresentada, não quer dizer que o juiz possa, in concreto, adotar qualquer critério de valoração, devendo sim adotar critério que se mostre adequado para aquele caso específico, cuidando em justificar racional e objetivamente essa adequação, para que se possa aferir a razoabilidade de seu ato.
Quanto ao aspecto da racionalidade da valoração, aduz Fredie Didier[4]: "a motivação deve ser racional: deve partir de cânones racionais comumente aceitos e reconhecidos no contexto da cultura média daquele tempo e daquele lugar em que atua o órgão julgador. Não se confunde com uma ciência exata ou com uma lógica absoluta da matemática pura. O que se espera se espera é que atenda às regras de validade da argumentação e do raciocínio jurídico".  
Outrossim, Didier também ressalta a necessidade da observância das máximas da experiência, sendo vedado ao juiz, por exemplo, negar a lei da gravidade, ou negar que a combinação das cores azul e amarelo resulta na cor verde[5].
Dito isso, acredito que a redação inovadora do dispositivo em comento vem muito mais para consolidar, ou tentar assegurar a aplicabilidade prática de um sistema já existente, posto que inerente ao nosso sistema constitucional, do que, propriamente, para erigir um novo sistema de valoração da prova.
A iniciativa impedirá que os julgadores se utilizem de uma interpretação literal e assistemática do texto normativo para justificarem suas arbitrariedades, em matéria de valoração probatória.
O artigo 371 do CPC/2015 traz, portanto, um recado claro dirigido aos magistrados: não há, no desempenho da função jurisdicional, espaço para o arbítrio e para a irracionalidade.



[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 50ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.1 p. 415
[2] Apud SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1. p. 354.
[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 953 e 954.
[4] DIDIER JUNIOR, Fredie. et al. Curso de direito processual civil. 10 ed. Salvador: Jus Podivm, 2015. V2.  p. 103
[5] DIDIER JUNIOR, Fredie. op. cit. p. 106

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

A Fundamentação das Decisões no Novo CPC (Parte I – Vedação à Decisão-Surpresa)


Dando sequência à série de comentários sobre as inovações promovidas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro, tratarei, por hora, da fundamentação das decisões judiciais, cujo regramento sofreu importantes alterações.
Por ser assunto que demanda reflexões um tanto quanto profundas, dedicarei esse post a esmiuçar somente a regra da vedação à decisão-surpresa, consagrada no artigo 10 do NCPC, deixando para os posts subsequentes a análise das demais alterações relativas à fundamentação dos atos decisórios.
 Indo direto ao ponto, veja-se a redação do artigo 10 do Novo Código:
Art. 10.  O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Atendendo aos reclamos da melhor doutrina, a regra insculpida no sobredito artigo impõe ao juiz que, ao vislumbrar a possibilidade de aplicação, na sentença, de fundamento jurídico não alvitrado por qualquer das partes no processo, conceda, antes da prolação da sentença, prazo para que os litigantes se manifestem sobre a matéria inovadora, não sendo possível, do contrário, empregar tal fundamento na motivação do decisium, sob pena de invalidade do ato.
Está-se diante de rega que intenciona concretizar a nova dimensão dada ao princípio do contraditório no NCPC, decorrente da adoção do modelo cooperativo de processo, que tem por mote o recrudescimento do poder dos jurisdicionados na condução do feito e, naturalmente, na resolução da lide (aliás, a consagração desse modelo pelo Novo Código é que deu ensejo ao permissivo, constante do seu artigo 190, para a celebração de negócios jurídicos processuais atípicos, sobre os quais falei no post anterior).
Essa nova dimensão do contraditório, já preconizada a longo tempo pela doutrina, e agora chancelada pelo texto legal, consiste no abandono de uma visão meramente formal dessa garantia -  que se satisfaz com a oportunização da oitiva bilateral das partes e a cientificação dessas sobre os atos processuais - passando a enxerga-la pelo aspecto substancial, segundo o qual há direito subjetivo das partes a um efetivo poder de influência no julgamento da causa, vedando-se decisões cujos fundamentos não tenham sido postos em discussão no feito.
 A este ponto, convém transcrever a cátedra de Humberto Theodoro Júnior:
O principal fundamento da comparticipação é o contraditório como garantia de influência e não surpresa. [...] Nesse sentido, o princípio do contraditório receberia uma nova significação, passando a ser entendido como direito de participação na construção do provimento, sob a forma de uma garantia processual de influência e não surpresa para a formação das decisões. [...] Assim, diferentemente de mera condição para a produção da sentença pelo juiz ou de aspecto formal do processo, a garantia do contraditório, como veremos a seguir, é condição institucional de realização de uma argumentação jurídica consistente e adequada e, com isso, liga-se internamente à fundamentação da decisão jurisdicional participada – exercício de poder participado [...][1].

Sem dúvida, aumentar o campo de atuação das partes no processo significa amplificar sua legitimidade democrática, já que “democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório”[2].
Em termos práticos, o dispositivo em tela visa compatibilizar a garantia do contraditório, na perspectiva substancial destacada acima, com a denominada teoria da substanciação da causa de pedir, que segundo entendimento doutrinário bastante difundido, é acolhida pelo direito brasileiro desde a edição do Codex instrumental de 1939, o que se haveria ratificado após a edição do Código de 1973, e também do Novo CPC de 2015.
Segundo a mencionada teoria, o núcleo da causa de pedir (e da causa excipiendi do réu) seria composto apenas pela narrativa fática apresentada, e não por seus aportes jurídicos, de sorte que apenas aquela narrativa se prestaria a delimitar a cognição do juiz e individualizar a demanda.
De tal arte, estando o julgador vinculado apenas ao conteúdo fático das postulações, cabe-lhe enquadrar juridicamente esses acontecimentos da maneira que entender adequada, podendo desbordar da qualificação proposta pelos litigantes.
A desvinculação do julgador quanto aos fundamentos jurídicos trazidos na demanda e na resposta é sintetizada nos brocados latinos da mihi factum dabo tibi jus (dá-me os fatos e eu te dou o direito) e iura novit curia (o juiz conhece o direito), sempre muito prestigiados em nosso direito, justamente em decorrência do acolhimento da teoria da substanciação.
Com efeito, os processualistas costumam atribuir a recepção da dita teoria ao artigo 282, inciso III, do CPC/1973 (equivalente ao atual artigo 319, inciso III, do CPC/2015) - dispositivo que impõe a precisa descrição, na petição inicial, dos fatos e fundamentos jurídicos que embasam a pretensão autoral - o que penso ser um equívoco, porquanto nele não há qualquer menção da qual se possa inferir a composição do núcleo da causa de pedir.
A meu sentir, a incorporação dessa teoria ao nosso processo civil, a despeito da ausência de dicção legal conclusiva, decorre de nossa tradição jurídica processual, produto de longa sedimentação doutrinária e jurisprudencial, que deita raízes no direito romano, no qual a causa de pedir era representada apenas pelos fatos que justificavam o agere[3], o que explica a maior importância atribuída, hodiernamente, à narração fática.
Nada obstante, a assimilação incondicional dos adágios iura novit curia e da mihi factum dabo tibi jus, já há muito, é alvo de críticas severas por parte de alguns estudiosos, como o prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira:
A faculdade concedida aos litigantes de pronunciar-se e intervir ativamente no processo impede, outrossim, sujeitem-se passivamente à definição jurídica da causa efetuada pelo órgão judicial. E, exclui, por outro lado, o tratamento da parte como simples "objeto" de pronunciamento judicial, garantindo o seu direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado[4].

 Tais afirmações são inteiramente procedentes. Ora, as partes não vêm a juízo simplesmente para apesentar fatos e indagar por suas repercussões jurídicas. Elas pretendem um resultado, e, dentro de um sistema legal democrático, têm todo o direito de participar ativamente de sua produção. Por essa razão, não se pode enxergar o magistrado como o senhor absoluto do processo que, do alto de sua onisciência jurídica, diz o direito aplicável aos fatos narrados pelas partes, meras expectadoras da atuação jurisdicional.
Bem por isso, mesmo antes da vigência do NCPC, a oitiva prévia das partes quanto a novos fundamentos jurídicos idealizados pelo magistrado já era defendida por Carlos Oliveira:
(...) inadmissível sejam os litigantes surpreendidos por decisão que se apóie em ponto fundamental, numa visão jurídica de que não se tenham apercebido.  O tribunal deve, portanto, dar conhecimento prévio de qual direção o direito subjetivo corre perigo, permitindo-se o aproveitamento na sentença apenas dos fatos sobre os quais as partes tenham tomado posição, possibilitando-as assim melhor defender seu direito e influenciar a decisão judicial[5].
Na mesma linha caminhavam as lições de Junior Alexandre Pinto, o qual, em trabalho monográfico sobre o tema, aduzia que a aplicação da máxima iura novit curia estaria condicionada à asseguração do contraditório, sendo tal medida essencial para que o magistrado pudesse utilizar um novo motivo na sentença[6].
Para visualizarmos melhor os malefícios suscitados pela aplicação da teoria da substanciação sem a condicionante derivada da regra da não-surpresa, observe-se o seguinte exemplo: “A” ingressa em juízo, pelo rito ordinário, pleiteando que lhe seja transferida a propriedade de um dado bem imóvel, sob a alegação de que havia firmado com “B”, proprietário do imóvel, um compromisso de compra-e-venda, cujo preço já teria pago integralmente. “A” afirma também, como fato simples - aqueles que apenas denunciam, ou ajudam a constatar a ocorrência dos fatos jurídicos -, que teria sido investido na posse do imóvel logo após a celebração do mencionado contrato preliminar, posse essa que viria exercendo a mais de quinze anos, sem oposição de “B”, o que atestaria a existência de acordo de vontade entre as partes. 
Em contestação, “B” afirma que realmente celebrara o dito negócio com “A”, transmitindo-lhe a posse do imóvel no ato da contratação, mas alega que esse não teria pago o preço total por quanto se pactuou a venda do aludido imóvel, razão pela qual o pedido do autor deveria ser indeferido.
Ao conhecer do caso, o juiz, apesar de constatar que o autor, de fato, não pagara integralmente o preço do bem sub judicie, julga procedente o pleito autoral, sob o fundamento de que, conforme narração fática incontroversa, o autor estaria na posse do imóvel há mais de quinze anos, exercendo-a de modo contínuo, pacífico e de boa-fé, o que o tornaria proprietário do imóvel por usucapião.  
Conquanto o magistrado tenha decidido com arrimo apenas em fatos alegados pelas partes, e tenha respeitado os limites do pedido autoral, desbordando apenas dos fundamentos jurídicos enunciados na mesma – o que, a princípio, seria compatível com o sistema da substanciação – é insofismável a lesão perpetrada à garantia do contraditório.
Realmente, na situação em foco, em nenhum momento as partes tiveram a oportunidade de se manifestar sobre a tese inovadora constante da decisão, sendo impossível ao réu, v.g., demonstrar a ausência dos requisitos da prescrição aquisitiva. Eis aqui a importância do artigo enfocado: impedir que decisões sejam tomadas com base em juízos solipsistas do magistrado, e, portanto, sem a devida participação dos litigantes.
Sem embargo, é importante frisar que o artigo em lume não impõe a intimação das partes para se pronunciarem sobre dispositivo de lei não mencionado nas postulações anteriores, quando o juiz pretenda invocá-lo em uma decisão.
É que há bastante diferença entre fundamento jurídico e fundamento legal. Este consiste na simples indicação de texto ou segmento de texto de lei relacionável ao caso, tendo presença facultativa nas petições. Aquele representa a demonstração da aplicabilidade e eficácia de determinada norma jurídica quanto aos fatos narrados (norma essa que pode ser produto da interpretação de um texto legal, ou de qualquer das fontes do Direito), bem como o estabelecimento de um nexo lógico entre as consequências jurídicas extraídas da norma e os pedidos deduzidos.
Nesse particular, vêm à talho os ensinamentos de Vicente Greco Filho:
Antes de mais nada é preciso observar que o fundamento jurídico é diferente do fundamento legal; este é a indicação (facultativa porque o juiz conhece o direito) dos dispositivos legais a serem aplicados para que seja decretada a procedência da ação; aquele (que é de descrição essencial) refere-se à relação jurídica e fato contrário do réu que vai justificar o pedido de tutela jurisdicional[7].
Assim sendo, apenas a inovação quanto a fundamentos jurídicos dependerá de consulta prévia aos litigantes, sendo certo que dispositivos legais diversos podem sustentar um mesmo fundamento.
Por fim, deixo uma reflexão que penso ser importante num momento como este, em que estão em curso profundas transformações na ciência processual: havendo o NCPC adotado o modelo cooperativo, elevando exponencialmente os poderes dos jurisdicionados no processo, não seria o momento adequado para mitigar a regra do iura novit curia, vedando ao magistrado que atribua uma nova qualificação jurídica aos fatos capaz de desvirtuar o núcleo da causa de pedir do autor, tal como ocorreu no exemplo descrito supra?
Voltemos ao exemplo dado linhas acima. Perceba-se que o autor alegou como fato essencial ou principal a existência de um pré-contrato de compra-e-venda, o qual geraria ao vendedor (o réu) a obrigação de assinar escritura pública transferindo a propriedade do imóvel ao autor, e fazê-la registrar no competente Registro de Imóveis, obrigação essa que foi descumprida pelo réu, sendo, portanto, devida a adjudicação compulsória do bem ao postulante. Em adendo, apenas para reforçar a existência de um acordo de vontades entre as partes, o autor aduziu, como fato secundário ou simples, que fora investido na posse do imóvel logo após a celebração do contrato, de forma que exercera a posse do bem por mais de quinze anos, e que o vendedor jamais se opusera a isso, o que ajudaria a demonstrar a existência do contrato entre as partes.
Sucede que, ao conferir novo enquadramento jurídico aos fatos narrados pelo autor, o magistrado promoveu uma inversão entre os fatos primários e os secundários, alterando radicalmente o núcleo essencial da causa de pedir. Realmente, ao apontar a aplicabilidade do instituto da usucapião, o fato central da causa de pedir passou a ser a posse, ao tempo em que o contrato se tornou um mero fato secundário, que apenas indicaria a posse com “justo título”, necessária à configuração da usucapião ordinária.
A princípio, penso que vedar a transmudação do núcleo da causa petendi pelo magistrado seria algo salutar, e totalmente consentâneo com o sistema cooperativo instituído pelo NCPC, bem como com a própria teoria da substanciação da causa de pedir, a qual tem no seu núcleo fático (fatos essenciais da pretensão) um elemento delimitador da cognição do juiz e individualizador da demanda. O que vocês acham?



[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. et al. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 63-64.
[2] DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil. 17ed. Salvador: Jus PODIVM, 2015. v.1 , p. 78.
[3] TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 3ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2009. p. 36.
[4] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 140
[5] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Garantia do Contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 
[6] PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São Paulo: Editora RT, 2007. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil, v. 12). p. 87
[7] GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 15ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. v 2. p. 98.