Mérito,
objeto litigioso, thema decidendum, lide, res in iudicium detucta, fundo do litígio, questão
principal, são muitas as designações para aquilo que constitui o núcleo do
processo de conhecimento.
Trata-se de noção
antiquíssima, já presente na processualística romana[1], embora a moderna teoria
do objeto litigioso (streitgegenstand), equiparado à pretensão processual (prozessuale Anspruch),
tenha sido desenvolvida pela doutrina alemã de fins do século XIX[2].
Pode-se dizer que preocupação do
Direito Moderno com o tema exsurgiu a partir da definitiva separação entre a
pretensão de direito material e a pretensão de direito processual, consolidada
com os estudos de Oskar Von Bülow[3], que deu início à fase
autonomista ou conceitual do direito processual civil, na qual surgiram as grandes
teorias sobre a natureza da ação e do processo, desenvolvendo-se uma autêntica
ciência processual[4].
Com
efeito, conquanto possa parecer um esforço acadêmico inútil - ainda mais em
tempos de "celeridade e efetividade a todo custo", no qual todos os
olhos estão voltados para a execução - buscar um conceito preciso de objeto
litigioso é fundamental para a compressão de muitos institutos do processo
civil, tais como cognição, coisa julgada, litispendência, conexão, questões
prejudiciais, etc.
Todavia, o assunto é dos mais intrincados, razão pela qual, a despeito
do empenho dos juristas - destacadamente os alemães -, jamais se logrou chegar
a um consenso sobre a composição do objeto litigioso do processo, havendo duas
correntes principais: aquela segundo a qual ele seria representado apenas pelo
pedido, e aquela que o vê como um binômio formado por pedido e causa de pedir[5].
Essa segunda corrente teve como principal defensor o
alemão Walter J. Habscheid, que propugnava a composição dúplice do objeto
litigioso do processo, o qual seria formado pela “coisa” demandada (Gegenstand),
que corresponderia a uma afirmação
jurídica, e pela “causa” da
demanda (Grund), consistente num estado de fato da vida[6].
Tal concepção também é
aceita por outros célebres juristas, estrangeiros e nacionais, tais como Manuel
Ortells Ramos[7],
Araken de Assis[8] e José
Ignácio Botelho de Mesquita[9].
Contudo, no direito brasileiro, embora tenha
crescido, nos últimos tempos, o número de adeptos da concepção maximalista de
mérito (pedido + causa de pedir), ainda prepondera na doutrina mais tradicional
o entendimento de que o objeto litigioso do processo seria representado
unicamente pelos pedidos autorais.
Assim aduz Sydney Sanches: “[...] só
uma parte do objeto do processo constitui o objeto litigioso do processo: é o
mérito, assim entendido o pedido do autor formulado na inicial e nas
oportunidades em que o ordenamento jurídico lhe permita a ampliação ou modificação”[10].
Dinamarco se manifesta em idêntico sentido:
O
objeto do processo consiste no petitum
do demandante, e não nos fundamentos invocados por ele e muito menos nas razões
defensivas do demandado. Sobre o pedido o juiz decide principaliter, sobre os fundamentos, incidenter tantum. Eis por que, com plena legitimidade sistemática,
o art. 469 do Código de Processo Civil põe fora do alcance da coisa julgada
material todos os fundamentos da sentença e estende essa regra à “apreciação da
questão prejudicial incidentemente no processo”[11].
Ilustrado o dissenso
doutrinário reinante sobre o tema, tomo a liberdade de expor, a partir de agora,
a minha visão sobre a matéria.
Com o devido respeito, parece-me
que o entendimento adotado por ambas as correntes é falho, isso porque essas
noções de objeto litigioso partem de uma compreensão errônea sobre a atividade
decisória, como se intentará demonstrar doravante.
Como cediço, ao se deparar com um processo
judicial litigioso, o magistrado primeiro analisa e resolve as
questões de fato e de direito pertinentes à lide, e depois disso, decide ou
julga o mérito, emitindo um comando representativo da tutela jurisdicional
cognitiva em favor daquele que se mostrou com razão. Esse é o curso normal do
processo, caso não haja nenhuma intercorrência impeditiva.
Também
é assente que o que transita em julgado não são os fundamentos que o magistrado
emprega para justificar a decisão, ou mesmo a conclusão por ele obtida sobre a
lide, mas apenas o comando emitido a partir dessa conclusão, e que vem expresso
no decisório da sentença ou acórdão, comando esse que, além do aspecto declaratório,
pode ser condenatório e/ou constitutivo.
Ocorre
que, diferentemente do que sugere a concepção de mérito sustentada pela
doutrina tradicional, o ato de decidir ou julgar é complexo, envolvendo, num
primeiro momento, atividade de cunho intelectivo ou deliberativo e, apenas em
um segundo momento, atividade de natureza preceptiva ou imperativa.
O
próprio Liebman, um dos grandes responsáveis
por consolidar a noção de objeto litigioso como pedido do autor, declarava que “julgar”
é valorar determinado fato ocorrido no passado, valoração essa que se dá sob a
ótica do direito vigente, determinando-se, em consequência, a norma concreta
que passará a reger o caso[12].
Vê-se,
pois, que a não ser por esse segundo momento, relativo à emissão de um comando
imperativo com aptidão para se tornar imutável por efeito da coisa julgada, e
pelo objeto específico sobre o qual incide – o mérito -, o julgamento em nada
mais difere do ato da cognição,
realizada sobre as questões incidentais, o que faz concluir que o mérito seja
também uma questão a ser resolvida (aliás,
a principal delas), e não um simples dado,
como são os pedidos e a causa de pedir.
Deveras,
tendo-se à vista a feição cognitiva do ato decisório, fica evidente que não são
propriamente os pedidos e/ou a causa de pedir que são julgados (analisados,
valorados e resolvidos), mas a questão relativa à procedência ou improcedência
dos pedidos em face de todo o material sujeito à cognição, essa sim a
verdadeira “questão principal”.
É,
sem dúvida, um erro crasso afirmar que a questão principal diz respeito unicamente
ao pedido, ou mesmo a esse acrescido da causa de pedir, isso porque aquele não
é analisado no vácuo, ou em face apenas da causa
petendi.
Em
verdade, a existência de pretensão material (aqui entendida como direito
subjetivo oriundo de uma situação fática) e a compatibilidade dessa com os
pedidos é perquirida frente às conclusões obtidas pelo magistrado mediante a
resolução de todas as questões ligadas à matéria de fundo do litígio, questões
essas oriundas não apenas da demanda do autor, mas da defesa do réu, e da
própria iniciativa do juiz, quanto às matérias que a lei lhe faculta conhecer
de ofício.
Outrossim,
perceba-se que a corrente que defende o mérito como binômio pedido/causa de
pedir não o faz por considerar o aspecto cognitivo do ato decisório, mas apenas
em atenção à necessidade de identificação do pedido. Nesse sentido, veja-se a lição
de José Roberto dos Santos Bedaque, que, ao justificar a inclusão da causa de pedir no objeto litigioso,
aduz que a causa de pedir que revela o nexo existente entre direito material e
processo, possibilitando a identificação do próprio objeto mediato da ação (o
bem da vida pretendido), de modo que é a partir dos fatos e do fundamento
jurídico da demanda que se chega ao pedido[13].
Da mesma forma Junior Alexandre Pinto:
“a causa de pedir representa na demanda elemento indissociável do pedido, sendo
impossível o entendimento deste sem a ocorrência da primeira”[14].
De fato, os pedidos não conseguem exprimir seu
significado isoladamente, dependendo, para isso, da causa de pedir, mas não é
apenas a compreensão dos pedidos que é buscada no ato do julgamento, mas a
aferição de sua procedência ou improcedência.
De
tal arte, a afirmação de que o thema
decidendum ou mérito seria representado apenas pelos pedidos, ou por esses
em conjunto com a causa petendi,
reflete uma visão incompleta da atividade decisória, porquanto negligencia a
sua feição cognitiva - consistente na produção de juízo de valor sobre a lide,
o qual vem expresso na fundamentação da sentença -, fazendo ressaltar apenas o
seu caráter preceptivo, como provimento jurisdicional expresso no decisório,
que seria delimitado apenas pelo pedido (identificado ou não através da causa
de pedir), o qual funcionaria como um autêntico “projeto de decisório”, um
esboço do comando a ser exarado pelo juiz na parte final da sentença.
A
outro giro, mesmo que se quisesse compreender o ato decisório como simples
emissão de comando jurisdicional, sem caráter cognitivo, seria descabido
sustentar a identidade entre pedidos (ou pedidos + causa de pedir) e objeto litigioso,
eis que isso equivaleria a negar a possibilidade de decisão declaratória de
improcedência, já que esse comando, obviamente, não foi pleiteado pelo autor,
sendo forçoso concluir que essa decisão estaria fora dos limites do mérito, o
que é um absurdo!
Assim,
a todos os olhos, resta patente que não são os elementos objetivos da demanda em
si (causa de pedir e/ou pedido) que servem de base para a emissão do provimento
jurisdicional constante do decisório, mas sim a conclusão obtida pelo
magistrado a partir da resolução da questão principal, que envolve também
outros elementos, como demonstrado acima.
Destarte,
penso que o mérito seja a questão relativa à procedência ou improcedência dos
pedidos frente às conclusões obtidas a partir da resolução das questões
incidentais, sendo certo que a resolução da questão principal pode resultar num
comando a favor do autor ou a favor do réu. Assim, não há equívoco em afirmar
que todas as ações são, em alguma medida, dúplices.
De
mais a mais, seguindo a linha de raciocínio aqui proposta, é descabida a
diferenciação feita pela doutrina brasileira entre mérito e questões de mérito,
já que o próprio mérito é uma questão que se superpõe e, de certa forma,
congloba todas as questões ou pontos que se relacionam com a demanda e/ou a defesa.
Não há, pois, o mérito e as questões de mérito, mas apenas as questões
atinentes ao fundo do litígio (situação material discutida), subdivididas entre
questões incidentais e questão principal.
[1] BUZAID, Alfredo. apud SÁ, Renato Montans de. op. cit. Eficácia
preclusiva da coisa julgada. 2010,
Dissertação (mestrado em Direito Processual Civil) – Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em <http: www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp134829.pdf>
Acesso em: 03 set. 2014.p. 74
[3] BÜLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y
los presupuestos procesales, trad. Minguel Angel Rosas Lichtschein. Buenos
Aires: Ejea, 1964. apud TUCCI, José
Rogério Cruz. op. cit. p. 97
[4] CINTRA, Antônio Carlos Araújo;
GRINOVER, Ada Pellegrino; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo.28ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 51
[5] DIDIER JUNIOR, Fredie. Contradireitos, objeto litigioso do processo
e improcedência. Disponível em
<http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/paginas_185_196.pdf> Acesso em:
15 de Dez. 2014.
[6] HABSCHEID,
Walter J. L’oggetto del processo nel diritto processuale civile tedesco. In.: Rivista
di Diritto Processuale, II serie, 1980, p. 454 e ss. apud
LEMOS, Jonathan Iovane de. Introdução
ao estudo do objeto litigioso do processo. Disponível em <http://www.tex.pro.br/home/artigos/73-artigos-set-2007/5670-introducao-ao-estudo-do-objeto-litigioso-do-processo-sucintas-consideracoes-sobre-os-elementos-individualizadores-do-meritum-causae>
Acesso em: 11 de Dez. 2014.
[7] RAMOS, Manuel Ortells. Derecho procesal civil. Navarra:
Aranzandi, 2000. p. 255 apud PINTO,
Junior Alexandre Moreira. A causa de
pedir e o contraditório. cit. p.
33
[8] ASSIS, Araken. Cumulação de Ações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2002, p. 117-122.
[9] MESQUITA, José Ignácio Botelho de.
A causa petendi nas ações reivindicatórias.
Revista da Ajuris, n. 20, 1980, p.
167-168.
[10] SANCHES,
Sydney. Objeto do Processo e Objeto Litigioso do Processo. Revista Ajuris. n° 16, 1979, Porto Alegre.
p. 155-156.
[11] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil.
6ed. São Paulo: Malheiros, 2011. v.3. p. 540. Na mesma linha segue o magistério
de Vicente Greco Filho (GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 15ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2002. v.2 p. 58)
[12]
MARINONI,
Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil:
do processo de conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. v. 5. p.
29
[13] BEDAQUE, José Rogério dos Santos. Os elementos objetivos da
demanda examinados a luz do contraditório. Causa de Pedir e Pedido no processo civil (questões
polêmicas). Coordenadores: José Rogégio Cruz e Tucci; José Roberto dos Santos
Bedaque. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 30.
[14] PINTO, Junior Alexandre Moreira. A causa petendi e o contraditório. São
Paulo: Editora RT, 2007. (Coleção Temas Atuais de Direito Processual Civil, v.
12). p. 33